Espaços gamer e ataques a escolas no Brasil

dezembro 14, 2023

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Nos últimos anos, o Brasil tem testemunhado um grande aumento no número de ataques realizados em ambiente escolar. Um estudo publicado pelo Ministério da Educação em Outubro deste ano (ATAQUES ÀS ESCOLAS NO BRASIL: análise do fenômeno e recomendações para a ação governamental) descreve de que forma as redes sociais têm contribuído para a escalada da violência, em especial a partir de espaços de socialização.

Abaixo, listamos 5 achados importantes para quem quer saber mais sobre o assunto:

1 – A subcultura da True Crime Community (TCC) passou de entusiastas de crimes reais para extremistas que celebram massacres em escolas.

Originalmente composta por criadores de conteúdo e membros interessados em crimes reais, True Crime Community é uma subcultura online presente em redes sociais como Twitter, Instagram, Tiktok e Discord, em que seus membros trocam informações sobre diversos tipos de crime, de atentados em escolas a assassinatos em série.

A partir de 2021 no Brasil a subcomunidade TCC foi gradativamente invadida por membros de perfil extremista voltados à glorificação de assassinos, atiradores escolares e supremacistas brancos, com as principais postagens da subcomunidade voltadas à celebração de massacres e exaltação de autores de massacres e atentados terroristas, como Columbine (EUA, 1999), Christchurch (Nova Zelândia, 2019), Realengo (Brasil, 2011) Suzano (Brasil, 2019) e Aracruz, (Brasil, 2022). 

Os ataques às escolas, normalmente – em que pese especificidades –, são “copycat crimes” (crimes por imitação), ou seja, delitos que se baseiam ou são inspirados em um crime anterior. Isso favorece e explica o “efeito de onda”, estabelecido no Brasil desde 2017 e exacerbado nos últimos anos.

De acordo com o relatório de monitoramento produzido pela jornalista Sofia Schurig (2023), do Núcleo Jornalismo, a TCC possui atuação internacional. Durante o monitoramento do grupo nas redes TikTok e Twitter, foram encontradas publicações em inglês, espanhol e russo, além do português brasileiro. Foi observada, ainda, uma intrínseca relação com o neonazismo, neofascismo e o extremismo violento. 

Entre outubro e novembro de 2022, a autora do relatório monitorou 46 canais neonazistas na plataforma Telegram para uma reportagem. No ano de 2023, após o ataque contra uma escola na Vila Sônia e a respectiva cobertura midiática, foram encontradas múltiplas postagens na subcomunidade incentivando outros massacres, além de publicações violentas contendo discurso de ódio contra mulheres, apoio à necrofilia, ao abuso sexual e físico e à violência contra animais, assim como mensagens de apologia/incentivo aos tiroteios escolares, sobretudo quando as vítimas eram mulheres, pessoas não brancas ou com deficiência.

Os dados apresentados ilustram que essas subcomunidades são frequentadas majoritariamente por adolescentes em idade escolar, em um país que, assim como ocorre nos Estados Unidos, possui instituições escolares com corpo docente majoritariamente feminino, que sofrem ataques de figuras públicas as quais instigam a comunidade escolar local contra educadoras e educadores que combatem o discurso de ódio. 

Dessa maneira, é necessário o desenvolvimento de políticas de formação dos profissionais da escola para trabalhar sobre a questão da interação dos jovens com as plataformas digitais, auxiliando na compreensão sobre a cultura digital, a cultura gamer e sobre como os jovens devem ter cuidado com os conteúdos e grupos que disseminam a cultura do ódio e promovem a violência. 

 ¹Brazilian Ministry of Education, School Attacks in Brazil: Analyzing the Phenomenon and Recommendations for Government Action (October 2023)

2 – O papel do Discord

Investigações policiais também têm demonstrado relação entre servidores organizados no Discord por membros do TCC e os ataques às escolas. Já está concluído que os ataques de Barreiras (2022) e Cambé (2023) foram organizados na plataforma. O autor do massacre de Aracruz (2022) fazia parte de uma subcomunidade do TCC no Discord e, nos dias anteriores ao ataque, anunciou em sua conta a intenção de cometer um massacre e distribuiu convites para seu servidor do Discord no Twitter. 

A forma como a plataforma foi desenvolvida impõe desafios ao monitoramento e investigação pelas autoridades. Com uma moderação ineficiente, o Discord se demonstra leniente com usuários que quebram sua política de uso da plataforma, publicando discursos de ódio, conforme matéria da Agência Pública de abril de 2023. Imagens obtidas pelas jornalistas Letícia Oliveira e Tatiana Azevedo, em capturas de tela durante monitoramento de servidores, confirmam que o problema permanece.

É difícil mapear servidores e não há uma base de dados completa de servidores a ser consultada. Os usuários se identificam com nicknames e os usernames podem ser alterados a qualquer momento, inúmeras vezes. Os servidores podem ser deletados inteira ou parcialmente e não há armazenamento de dados pela plataforma, perdendo-se assim o histórico. 

Apesar disso, desde a onda de violência contra as escolas ocorrida neste ano, o Discord tem realizado um esforço para colaborar com as investigações. A empresa constituiu uma representação no Brasil e implementou uma ferramenta para monitoramento pelas famílias.

3 – Controle parental

Ferramentas que possibilitam maior agência dos usuários das plataformas, como funcionalidades de controle parental ou de avaliação das fontes de informação (incorporadas recentemente ao buscador Google) esbarram no baixo letramento informacional e midiático da população em geral. 

Pais, guardiões e outros usuários dificilmente conhecem ou fazem uso dessas funcionalidades. Após as denúncias sobre os crimes cometidos no Discord e a colaboração da plataforma com as investigações policiais, muitos desses usuários migraram para espaços virtuais considerados mais seguros ou que garantem o anonimato, como os fóruns anônimos conhecidos como chans. 

Nos últimos anos, havia escassa movimentação nos chans brasileiros e há indícios de que muitos dos usuários de chans migraram para o Discord, se tornando membros dos grupos que cometem crimes na plataforma. 

É preciso que as famílias recebam orientação e informação que ajudem a acompanhar seus filhos na interação digital, bem como sejam estimulados a construir outros processos de convívio e atividades culturais, esportivas e de lazer. Tais ações carecem de um trabalho intersetorial e interinstitucional, com forte apoio dos governos federal, estadual, distrital e municipal, assim como de toda a comunidade e sociedade civil.

Chans e o seu significado

As imageboards (IB), também conhecidas como chans, são fóruns de internet de interface simples criados para o compartilhamento de imagem e texto de forma anônima, que podem estar hospedados tanto na superfície quanto na dark web. 

Os usuários desses fóruns se autodenominam “anons” ou “anonymous” pelo fato de as postagens serem todas como usuário anônimo. Apesar do anonimato, muitos dos usuários das imageboards usam nicknames que podem ser registrados no site. 

No Brasil, os usuários dos chans se autodenominam como annons, mas para os usuários de internet que não frequentam esses espaços, eles normalmente são conhecidos por channers. A palavra chan é uma abreviação de channel. Os chans são divididos em boards para a discussão de assuntos diversos como videogames, animes, política, música, filmes etc. 

Todos os chans possuem uma board principal que chama /b ou random, onde os usuários podem postar mensagens de conteúdo aleatório. O mais famoso dos chans é o 4chan, fundado em 1º de outubro de 2003. O 4chan se tornou conhecido por moldar a cultura da internet como conhecemos hoje pelo compartilhamento de memes, a criação de uma linguagem própria chamada chanspeak que se disseminou por toda a internet e pela articulação de ações políticas nas redes.

Devido ao anonimato e diante da dificuldade de rastreamento, os usuários desses fóruns se sentem seguros para cometer crimes. Antigamente, a maioria dos chans extremistas ficava hospedada na dark web. Também foi no 4chan que surgiu o perfil conhecido como Q, que dizia ser alguém com acesso elevado às informações sigilosas do governo dos EUA e disseminava teorias da conspiração a respeito, criando assim o movimento conspiratório de atuação internacional conhecido como QAnon

Os conteúdos e discursos das redes sociais sem moderação vão se aproximando cada vez mais daqueles que se observam nos chans. Com agravantes, porém: o volume de usuários das plataformas é incomparavelmente maior e o funcionamento dos mecanismos algorítmicos de recomendação favorece a expansão deste tipo de conteúdo.

Regulamentação das redes

É urgente que ocorra moderação das imagens violentas, das apologias aos comportamentos de risco e aos crimes. As plataformas não podem mais seguir sem uma regulamentação que estabeleça obrigações relativas a deveres de cuidado para os provedores, relatório de risco e medidas de mitigação. 

É necessário responsabilizar as plataformas que não demonstrarem terem envidado os esforços mínimos necessários para a indisponibilização de conteúdos ilícitos e que contrariem a proteção às crianças e aos adolescentes estabelecidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. 

Adicionalmente, os provedores devem estabelecer mecanismos de denúncia para que os usuários também possam reportar irregularidades na plataforma. Além disso, outra medida prevista é a realização de avaliações periódicas sobre como os serviços podem estar facilitando a disseminação em larga escala de conteúdos ilegais ou ameaçando a liberdade de expressão.


Mariana Ribeiro Conselheira Senior para Programas Globais
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