Como mães brasileiras ajudaram Lula a vencer as eleições

janeiro 19, 2023

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A matéria original foi publicada por openDemocracy.


Uma comunidade digital, uma vez focada nos desafios de parentalidade, tornou-se um espaço único para o empoderamento político

Mães brasileiras tomam as ruas na carrinhata em São Paulo | Foto de Stella Bolina

 

De São Paulo, no Sudeste, a Salvador, no Nordeste, mães brasileiras têm construído uma nova posição na política nacional. Entre o 1º e o 2º turnos das eleições presidenciais do mês passado, elas mostraram que lugar de mãe é nas ruas, protestando com seus bebês e filhos contra a política de ódio e de intolerância.

Enquanto carreatas do atual presidente de direita Jair Bolsonaro percorriam ruas de cidades brasileiras, o Movimento das Carrinhatas, como ficou conhecido, trocou motoqueiros por carrinhos de bebê empurrados por mães e cuidadoras. Os protestos ocuparam as ruas de cidades em todo o país – Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Salvador, Brasília e Juiz de Fora.

O movimento teve início em São Paulo, com as mães se reunindo pelo WhatsApp após o 1º turno, no dia 2 de outubro. Elas estavam preocupadas com a possibilidade de reeleição de Bolsonaro, que obteve um desempenho muito melhor no 1º turno do que as pesquisas previam. As mães se organizaram, saindo às ruas em defesa da democracia e em apoio ao adversário de Bolsonaro, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

As ações delas inspiraram mães em outras partes do país, incluindo cinco capitais. Milhares de mulheres, junto a seus filhos, se mobilizaram numa experiência única de ressignificação de comunidades digitais já existentes. Redes virtuais em que as mulheres buscavam apoio durante a gravidez e nas preocupações, insônia e exaustão da maternidade foram amparo para muitas delas. Esses espaços – nos quais elas compartilhavam informações sobre choro, amamentação, doenças e remédios – se transformaram em uma comunidade digital de inovação política.

Manifestantes ao redor de faixa gigante na avenida Paulista | Tony Marlon. Todos os direitos reservados

 

Em nome de seus filhos e em favor das causas de saúde pública, educação de qualidade e o fim da violência e do desmatamento, mães de origens diversas foram às ruas contra Bolsonaro, que fez abertamente declarações misóginas, violou direitos humanos e desmantelou a proteção ambiental ao longo dos quatro anos em que esteve no poder.

O Movimento das Carrinhatas inspirou outras ações pequenas e significativas, como a “Floreata”, distribuição espontânea de rosas e de panfletos que estimulavam o diálogo entre as mães sobre a necessidade de ir às urnas.

“A política está espinhosa e você desistiu de votar? Vamos conversar?” – ativistas com buquês de flores vestiam camisetas com essa inscrição, um chamado para mães e mulheres debaterem política. Uma pesquisa do Elas Que Decidem – iniciativa do laboratório de mídia progressista Quid, que incentiva mulheres a votar – mostrou que elas têm pouco espaço para falar sobre política em casa, embora, quando sozinhas, estejam abertas para discutir tais questões.

Dentro do campo bolsonarista

As mães se mobilizaram para tentar reverter uma tendência entre muitas brasileiras de votar nulo ou em branco para manifestar sua desilusão com os políticos do país. O Elas Que Decidem estima que, na eleição de 2018, quase metade das mulheres brasileiras não votou em um candidato a presidente. Isso é relevante porque as mulheres no Brasil representam 53% do eleitorado – elas têm poder de implementar mudanças.

Pesquisas de opinião publicadas ao longo da campanha de 2022 mostraram que Bolsonaro era o candidato favorito de apenas 20% das mulheres, ante uma média de 50% em favor de Lula. Diante disso, a primeira-dama, Michelle Bolsonaro, acabou se tornando peça-chave na campanha do marido. Em um esforço para conquistar o voto feminino, Michelle participou de eventos exclusivos para mulheres, com retórica religiosa e foco especial em fiéis evangélicas, público entre o qual ela é popular. No dia seguinte ao 1º turno, ela também se desculpou publicamente pelas constantes ofensas do marido.

Foi uma dura batalha para Michelle e para o resto do campo bolsonarista. Algumas semanas antes do segundo turno, em 30 de outubro, Bolsonaro foi forçado a se desculpar depois de insinuar que um grupo de adolescentes venezuelanas que ele visitara em uma cidade do Distrito Federal e descrevera como “bonitas, arrumadinhas”, estariam envolvidas em trabalho sexual.

Mesmo antes desse último escândalo, entretanto, o governo Bolsonaro havia aumentado o preço dos alimentos, a fome e o desemprego, todos afetando mulheres, especialmente mulheres negras, de forma desproporcional, uma vez que quase metade de todas as famílias brasileiras são chefiadas por elas. Durante a pandemia, as mulheres cuidaram da educação domiciliar de seus filhos, mesmo enquanto o Brasil esperava a distribuição das vacinas, adiada de forma proposital pelo cético Bolsonaro e sua equipe.

‘Vote como uma mãe!’

Já se passaram 90 anos desde que as mulheres no Brasil conquistaram o direito ao voto, mas mesmo hoje nem sempre expressar-se é fácil para elas. Durante a recente campanha, houve mulheres sendo assediadas por declarar sua intenção de votar contra Bolsonaro, com incidentes comprovados em que maridos, pais e chefes homens coagem, chantageiam ou ameaçam mulheres. Muitas delas escolheram calar-se para ficar em paz. Foi quando as mães resolveram lembrar aos homens que o voto secreto no Brasil é protegido por lei. As ativistas convidaram candidatas eleitas, artistas e influenciadoras que também são mães para compartilhar vídeos com a hashtag #OVotoÉSeu. Na véspera do dia da votação, eles ocuparam uma das principais avenidas de São Paulo com cartazes que diziam “Vote como uma mãe!”

Era uma abordagem diferente da que vinha sendo usual na campanha. Em vez de grandes eventos ou de caros e impessoais materiais de comunicação, as mães organizaram atividades descentralizadas, geridas horizontalmente, estimulando a cooperação entre pessoas que não se conheciam. Com o diálogo como lema, os materiais eram disponibilizados para que qualquer pessoa pudesse replicar ou adaptar.

“Eu sei que o bolsonarismo não vai acabar, mas ser parte de um grupo tão bonito como este me traz esperanças”

No grupo de Whatsapp em que a maior parte das ações das mães foi organizada, mensagens de emoção e de gratidão circulavam nos dias finais da eleição. “Vocês me ajudaram a sobreviver”, disse alguém. “Eu sei que o bolsonarismo não vai acabar, mas ser parte de um grupo tão bonito como este me traz esperanças”, disse outra pessoa. “Foi ótimo ter o apoio de vocês neste mês, voltei a me reerguer”, dizia uma mensagem. E outra: “Obrigada mulheres, mesmo sem conhecer vocês, esse grupo me deu muita força!”

Uma ideia criada originalmente em São Paulo teve resultados nacionais, com as mães abrindo espaço a uma forma diferente de fazer política, uma maneira que demonstrava a força do esforço coletivo.

Números do eleitorado que começam a ser divulgados indicam uma queda na tendência histórica de abstenção: pela primeira vez, as ausências foram menores no 2º turno do que no 1º, conforme dados oficiais do Tribunal Superior Eleitoral. Numa eleição em que cada voto contava, e em que um dos lados tinha a seu favor a máquina estatal e as fake news, movimentos como esse das mães foram provavelmente cruciais para a vitória de Lula. No processo, o Brasil venceu, bem como venceu a democracia e venceram as próximas gerações.


Mariana Ribeiro Conselheira Senior para Programas Globais
Georgia Haddad Nicolau Diretora do Instituto Procomum & membro do Atlantic Fellows for Social and Economic Equity
Raiana Ribeiro Jornalista & coordenadora de projetos na área de educação e direitos humanos
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