O brincar e a prática esportiva podem levar à reabilitação comunitária? Confira três razões que nos fazem pensar que sim!

fevereiro 23, 2023

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Apesar de nem todos nós termos percebido, milhões de pessoas estão vivendo sob o peso de uma sindemia — termo utilizado para descrever pandemias convergentes — que define este momento histórico e tem efeitos profundos na saúde mental das sociedades. Após quase três anos de crises simultâneas, incluindo a pandemia global, o aprofundamento das divisões políticas e o aumento da violência extremista, é urgente encontrarmos oportunidades inovadoras de criar segurança, aprimorar a saúde mental e priorizar a equidade em nossas sociedades.

Todos estão contando com as lideranças, organizações e instituições filantrópicas para nos ajudar a encarar de frente os efeitos da crise de saúde mental — não só na população em geral, mas também com cuidados específicos, de forma intencional, para comunidades desproporcionalmente afetadas pela desigualdade e pela violência, levando em consideração os jovens que encontram-se afetadas por uma ou por ambas. 

A necessidade de estratégias e intervenções focadas na equidade é clara, mas quais são as soluções que podemos aplicar em escala? 

Uma resposta inesperada pode ser a chave: brincar! Brincar e praticar esportes estão emergindo como estratégias fundamentais de reabilitação e até de justiça para crianças e jovens durante este período crítico.

Com base em nosso trabalho recente com três organizações incríveis, acreditamos que abordagens informadas sobre trauma* relativas ao brincar e à prática esportiva podem ser a chave para desbloquear parte das transformações pessoais e comunitárias que tanto precisamos, começando pelas gerações mais jovens. 

*Cuidado informado sobre trauma é uma abordagem do campo de áreas assistenciais que considera que a probabilidade de um indivíduo ter um histórico de experiências traumáticas é maior que a de não ter tido. Esse tipo de cuidado promove abordagens – e ambientes propícios – focadas em reabilitação e bem-estar emocional, enfatizando a necessidade de criar segurança, escolha, colaboração, confiança e empoderamento em cada uma de nossas relações e interações com os demais.

Seguem algumas lições pertinentes sobre essa intrigante interseção entre o brincar e a reabilitação que podem sinalizar grandes mudanças sistêmicas voltadas ao bem-estar nesta época sem precedentes.


O que aprendemos sobre o brincar, a prática esportiva e a reabilitação comunitária

  1. Precisamos fazer o esporte ser mais do que apenas desenvolvimento físico – ele tem o poder de aprimorar o desenvolvimento socioemocional dos jovens e promover a reabilitação coletiva.

    É natural pensar nos esportes apenas como desenvolvimento físico, e nas brincadeiras apenas como uma atividade de recreação para crianças. Para além disso, é importante estar ciente do impacto que ambas as atividades possuem no desenvolvimento socioemocional de crianças e jovens e no potencial de contribuírem para a superação de vários tipos de trauma. O trauma pode estar relacionado a diversos acontecimentos na vida de uma criança, incluindo a incerteza e o isolamento decorrentes da pandemia de COVID-19, o aumento no estresse familiar devido à instabilidade política e aos desafios socioeconômicos, a perda de um ente querido, ou mesmo ser testemunha de violência. Brincadeiras não ajudam somente as crianças a reduzir a tensão e o estresse, mas também podem auxiliar os pais e cuidadores nos momentos em que a família inteira passa por sobrecargas emocionais e transições importantes.

    Como se pode imaginar, estes benefícios transbordam para além de crianças ou famílias individuais, chegando às comunidades, fortalecendo laços e construindo resiliência em um mundo em transformação. É fundamental lembrar que, a partir da criação de espaços para o bem-estar da criança com brincadeiras e esportes, também criaremos espaços de reabilitação coletiva e cooperação comunitária que atinjam todas as faixas etárias, raças, etnias, classes e divisões políticas.

  2. Para potencializar o brincar e a prática esportiva como espaços de cura, os adultos precisam abordar estes temas de forma intencional, através da lente do cuidado informado sobre trauma.

    Construir locais físicos e garantir que as crianças tenham tempo e espaço para brincar é só o começo — também precisamos pensar nas estratégias e intenções por trás dessas atividades. Aprendemos que treinadores que facilitam atividades esportivas possuem um enorme impacto positivo nas crianças — caso eles implementem uma abordagem informada sobre trauma em suas práticas, de forma a priorizar e a focar no bem-estar físico e mental de cada criança. Tanto treinadores como cuidadores deveriam receber materiais informativos específicos como os que são disponibilizados pelo Center for Healing and Justice through Sport (em inglês). Ferramentas como essas permitem que os cuidadores ofereçam uma atenção holística a crianças que já tenham sido excluídas, ou até mesmo afetadas negativamente, em esportes tradicionais e outros espaços de desenvolvimento, devido à sua raça, gênero, habilidade física, classe social e/ou histórico de traumas.

    Quanto priorizamos o bem-estar de cada criança, tomando o tempo necessário para compreender a realidade e o contexto individuais, podemos ir além de experiências engessadas de brincar que arriscam reforçar danos como discriminação, exclusão ou expectativas irreais de desempenho. Apesar de alguns adultos acreditarem no contrário, jovens são afetados igualmente pelos sistemas existentes. É crucial entender o contexto específico em que os jovens vivem para que possamos criar experiências de brincar que sejam fundamentadas com base nos desafios emocionais que eles enfrentam – e, de forma ideal, ajudem a curar seus efeitos.

  3. A promoção do acesso ao brincar e à prática esportiva para todas as crianças e jovens deve ser feita de forma intencional – especialmente em comunidades que têm sido marginalizadas histórica e sistematicamente.

    A falta de recursos para espaços esportivos e de lazer e esportes reforça desigualdades históricas em comunidades marginalizadas, onde a chamada “segregação recreacional” existe há gerações. Com muita frequência, espaços de lazer e programas esportivos bem-equipados são construídos fora do alcance de crianças que vivem em espaços de vulnerabilidade racial ou socioeconômica, o que contribui para a manutenção efetiva desse doloroso legado de segregação. Precisamos garantir que os benefícios do brincar e da prática esportiva informada sobre trauma não fiquem restritos a uma minoria privilegiada, mas sim estejam à disposição de todas as crianças e jovens, principalmente as mais afetadas atual e historicamente pela marginalização, pelo trauma e pelos impactos na saúde mental.

    Quando trabalhamos para ampliar o acesso ao brincar e à prática esportiva para os jovens impactados pela marginalização, devemos criar oportunidades que integrem e priorizem de forma significativa crianças com identidades de gênero diversas e habilidade físicas variadas. Cada criança deve ser convidada a integrar times esportivos e as estruturas físicas devem ser acessíveis a todas as crianças.

    Espaços de lazer podem ser mais benéficos a quem não tinha acesso prévio a eles, especialmente em tempos de crises globais. É urgente investir diretamente em locais onde as comunidades têm sido historicamente excluídas, de forma a assegurar que todas as crianças sejam beneficiadas pelos efeitos positivos do brincar e da prática esportiva. Organizações como a KABOOM!, que buscam e resolvem essas lacunas na “equidade dos espaços de lazer” podem oferecer uma colaboração importante para parceiros que queiram levar lazer, cuidado e segurança às comunidades que mais precisam.

 

Três recomendações para viabilizar o brincar e a prática esportiva informada sobre trauma em seus projetos e comunidades:

  1. Para que seus esforços sejam sustentáveis, engage proativamente os membros da comunidade local e as organizações comunitárias

    Nenhuma mudança positiva de longo prazo é possível sem trabalhar de perto com lideranças, organizações e moradores das comunidades para cocriar soluções baseadas no contexto, infraestrutura, desafios imediatos e conhecimentos culturais locais. Para evitar reforçar a exclusão e as desigualdades, vá além da publicação de conteúdos unilaterais e do lançamento de intervenções isoladas sem a parceria da comunidade. Em vez disso, invista em cocriação e infraestrutura que alcancem e atendam comunidades historicamente excluídas, a partir do fortalecimento das iniciativas locais, construindo capacidades in loco e investindo em recursos que permaneçam na comunidade. Esforços como estes podem auxiliar as crianças e jovens no longo prazo – em playgrounds, nas escolas e nas comunidades onde elas estão crescendo. Sem cocriação equitativa e investimento nas comunidades, perde-se a aceitação e a capacidade de sustentação de todo o trabalho de transformação.

  2. Para potencializar totalmente os benefícios de reabilitação do brincar e da prática esportiva, disponibilize e promova o acesso aos materiais informativos sobre trauma para jovens, adultos e lideranças comunitárias                                                       

     

    Para democratizar seu impacto, é essencial cocriar, de forma descentralizada, materiais que possam ser facilmente utilizados por pais, cuidadores e lideranças das comunidades locais. Ao criar um recurso comunitário acessível, as peças de comunicação podem ser amplificadas organicamente por meio de comunicadores, canais digitais e espaços presenciais que já contem com a confiança da comunidade.

    Para criar espaços de cura através de brincadeiras e esportes, a facilitação de uma liderança atenciosa e esclarecida, seja adulta ou jovem (seja um treinador, mãe, pai, cuidador, professor, profissional de saúde, bibliotecário ou outra liderança comunitária) será essencial na elaboração do espaço seguro que viabilizará o bem-estar socioemocional. Certifique-se de que seu projeto inclui equipar os membros da comunidade com os recursos e ferramentas de facilitação necessários para o brincar e a prática esportiva informada sobre trauma, garantindo experiências que vão além do desenvolvimento físico e da recreação, ajudando de fato no desenvolvimento de mecanismos de enfrentamento e na reabilitação e cura de crianças e jovens.

  3. Para garantir que as comunidades tenham acesso equitativo a espaços de lazer e de prática esportiva informada sobre trauma, preste atenção às barreiras enfrentadas pelas comunidades no acesso a estes recursos

    Para maximizar o impacto e a sustentabilidade destes espaços de reabilitação, é fundamental avaliar os sistemas, estruturas e políticas que reforçam desigualdades, criam traumas e impedem que crianças e jovens historicamente excluídas acessem experiências como essas. Pense em sua intervenção a partir de uma perspectiva de movimento vertical, de baixo para cima, em colaboração com parceiros da comunidade, com o objetivo de desafiar sistemas e estruturas para liberar financiamentos, alterar políticas nocivas e enfrentar narrativas e crenças que limitam o acesso de crianças e jovens a experiências de reabilitação e cura.

    Pensar desta forma pode ajudar o seu trabalho a ser mais que apenas intervenções pontuais, lançando estratégias sustentáveis e focadas no futuro que possibilitem a criação de espaços de cura e reabilitação em múltiplos níveis (comunitário, regional, e até nacional). Assim que as barreiras e necessidades da comunidade forem bem conhecidas, não há limites para se pensar em oportunidades de impacto abrangentes e solidárias, como campanhas de incidência política e políticas públicas, elaboração participativa de pesquisas, fortalecimento de redes de ecossistemas, lançamento de estratégias de mudança de narrativas e investimento em espaços e recursos comunitários – entre muitas outras.

Concluindo

Toda criança merece uma chance de brincar e se desenvolver.

Toda criança merece uma chance de ser parte de um time, para se beneficiar do espírito coletivo e das alegrias do trabalho em equipe.

E — toda criança merece uma chance de ser mais do que apenas os desafios sociais, emocionais ou relacionais que enfrentam.

O poder de reabilitação e cura da prática esportiva informada sobre trauma é uma maneira de tornar a reabilitação acessível a todas as pessoas e comunidades — principalmente aquelas que mais precisam.

Uma consideração final:

É importante que a reabilitação através do brincar e da prática esportiva não esteja disponível apenas para crianças e jovens! Nós, que somos adultos nesta sindemia sem precedentes, também precisamos adotar ferramentas não-convencionais para nosso próprio bem-estar, tanto como indivíduos quanto como sociedade. Usando estas lições para nos inspirar, incentivamos cada um dos leitores a explorar quais processos de reabilitação e cura através dos esportes e do brincar também podem ser ativados diariamente em suas vidas, projetos e comunidades.


Claudia Barcha Manager, Impact, Measurement, and Learning
Noelle Fries Associate Director, Strategy
Catherine Addo Founder, Racial Equity Impact Practice & Senior Strategy Director
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